RECUERDOS

Por João Carlos Gastal Junior

No texto que abre nosso “blog”, o Renato DV escreve: “acho que liberamos uma ‘energia’ muito forte”. Não sei quando ele escreveu isso, mas imagino que talvez tenha sido em novembro ou dezembro. Hoje, faltando nove dias para nosso encontro, está evidente que a percepção dele estava corretíssima.

A animação, a expectativa, o entusiasmo de todos é flagrante. Muitas pessoas têm dito que será um momento único e, ao dizê-lo, acredito que expressam um sentimento geral. Estamos todos antecipando que será uma festa muito grande, com muita emoção e muita vibração. Uma oportunidade ímpar para expressarmos nosso carinho uns pelos outros, para reviver momentos inesquecíveis de sonho, utopia, paixão que compartilhamos, construímos juntos.

Muitos têm também manifestado a percepção de que aqueles anos, as marcantes experiências então vividas, o prazer e o aprendizado que extraímos da nossa convivência desempenharam um papel primordial na CONSTRUÇÃO das pessoas que somos hoje. E isso tem tudo a ver com nosso entusiasmo pela festa que está por vir, com a rápida e massiva adesão que nosso encontro teve e continua a ter.

Também em mim, diversas memórias foram reavivadas neste processo de preparação para o encontro.

Voltei a Pelotas em 1976, após cinco anos morando em Porto Alegre. Na escola estadual onde fiz o colegial -- como se chamava o atual ensino médio ­­--, sequer existia Grêmio Estudantil. Minha primeira experiência de rebeldia, em 73 ou 74, foi uma ameaça de greve que fizemos (incluindo o abandono da escola antes de encerrado o dia letivo) em protesto contra uma tentativa da Direção de proibir o uso de cabelos longos pelos alunos do sexo masculino (um tema de profundo conteúdo político, indiscutivelmente :-) ). Fomos vitoriosos. A Direção recuou naquele mesmo dia.

Do meu primeiro ano de Direito, no turno da noite, na PUC/RS, uma recordação que ficou foi de uma palestra de “Sua Excelência”, o então Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, seguida de debate com os alunos, promovida pelo D.A.. Como vocês podem ver, também na PUC, o D.A. do Direito era controlado pela direita. Lembro que um único estudante tentava enfrentar a fera. E, evidentemente, apanhava mais do que abigeatário flagrado pela polícia de Bagé. Eu, com 17 anos, calouro, isolado, não me arrisquei a abrir a boca. O Presidente do D.A., sentado à mesa ao lado do palestrante, não cessava de exaltar seu brilho intelectual. Puxa-saco da porra!

Lembro que, àquela época, o Direito era o único curso da UFPEL no qual as eleições para o D.A. ocorriam no primeiro semestre. Logo que ingressei, em 76, participei de uma chapa de oposição encabeçada pelo Renê Dutra, na qual o Mickey era o candidato a Vice-Presidente. Perdemos para a direitona descarada, como voltaria a acontecer nos quatro anos seguintes. Até que eu concluísse o curso, em julho de 1980, nunca conseguimos ameaçar seriamente a hegemonia dos reacionários. Se não me falha a memória, quem realizou a façanha de desalojá-los da nossa entidade foi o Luiz Carlos Gastal.

Também naquele ano de 76, filiei-me ao MDB e passei a militar no seu Setor Jovem, onde conheci o Jorge Antonini, a Ione, o Flávio Coswig, o Paulinho Brum, o Adão, o Hélder, o Arthur. Acho que o André Hypólito também fazia parte.

Um episódio marcante daquele período, para mim, foi a exibição de um filme em 8 mm chamado “O Apito da Panela de Pressão”, que promovemos na Câmara de Vereadores. Era um documentário sobre a retomada do M.E. em São Paulo e as imagens da moçada fazendo passeata mexeram com a minha cabeça.

No segundo semestre de 76, a Flávia, então minha namorada, caloura na Educação Artística, elegeu-se Presidente do D.A.. O Flávio Coswig elegeu-se Vereador e eu, terceiro Suplente da bancada do MDB.

Uma coisa incrível de lembrar é o absurdo grau de espontaneísmo, de desorganização com que chamamos e realizamos a famosa manifestação de maio de 77. Essa é uma história que vale a pena. Alguém sabe como aquilo começou? Vou contar.

Talvez uma semana ou dez dias antes, eu li no jornal que as entidades estudantis de São Paulo e do Rio estavam chamando mais um “Dia Nacional de Lutas”. Acho que o jornal reproduzia o panfleto de chamamento.

Para mim, aquilo parecia uma realidade bastante distante daquilo que eu observava no meio estudantil de Pelotas. Mas era, também, muito sedutor. Sem levar nenhuma fé, no dia seguinte, no intervalo das aulas, no subsolo do Direito, perguntei, meio em tom de blague, ao Vice-Presidente do D.A. naquela ocasião, alguém que eu conhecia por Cavalcante: “E aí, vamos fazer uma manifestação?” Para minha enorme surpresa, ele respondeu: “Ué, vamos”. Na verdade, a participação dele no evento resumiu-se a isso. Ele não deu as caras nem na reunião preparatória nem no próprio ato.

Mas aquela respostinha boba foi o suficiente para me colocar em movimento. A próxima lembrança que tenho é de tentar imprimir o panfleto convocatório em uma tipografia que funcionava junto ao Teatro Guarany. Depois de tudo acertado, contudo, o dono da gráfica me falou que não poderia imprimir aquilo sem um pedido assinado por um responsável, pois o texto era “um pouco forte” e ele já respondia a “um processo na Polícia Federal em Rio Grande”. Sugeriu que meu pai assinasse. Eu retruquei que eu mesmo assinaria, mas ele disse que isso não era o bastante.

A alternativa que restou, então, foi mimeografar o texto. Fomos, o Adão e eu, para a Câmara de Vereadores. Quem datilografou a matriz para mimeógrafo a tinta do panfleto convocatório foi um radialista que era, então, assessor da bancada do MDB (talvez se chamasse Walter).

Pelo que me lembro, reproduzimos o texto que eu lera no jornal e tentamos incluir alguma reivindicação local (falamos sobre o transporte para o campus...). A certa altura da redação, o Walter olhou para nós e perguntou: “É mesmo para ser panfletário?” Nós confirmamos e ele escreveu: “Estudante é gente. A comida do R.U. é lavagem.” Mas o Adão e eu não gostamos. Achamos que o pessoal não ia gostar da idéia de que estava comendo lavagem. Essas frases foram suprimidas.

O panfleto terminava com a mesma chamada do original paulista: “Hoje, consente quem cala”. E era apócrifo. Não continha assinatura de nenhuma entidade estudantil. Acho que, àquela altura, nossa turma só controlava a Educação Artística, a Agronomia e a Arquitetura. Mas, na verdade, eu não havia consultado qualquer dirigente, com exceção do tal Cavalcante, e, além do mais, provavelmente achávamos que envolver as entidades exporia demasiadamente suas diretorias.

Seria ótimo se alguém encontrasse alguma cópia desse panfleto. Quem sabe nos arquivos da Polícia...

A partir daí, não sei nem como as pessoas foram chegando. A maioria das pessoas que apareceram na reunião da véspera, que o Breno relatou com tanto talento, eu só conheci naquele dia. Aliás, uma coisa que muito me surpreendeu no relato do Breno é que eu jamais vi ou soube do meu pai andar armado. Uma nota folclórica de que me lembro, na reunião, é que, enquanto a maioria discutia acaloradamente se realizaríamos ou não o ato, e como, nosso saudoso Glauco, o mais “hipongão” de todos, sugeria, com seu jeito doce: “eu acho importante a gente se conhecer melhor...”

No dia, como todos sabem, o aparato repressivo era desproporcional ao número de pessoas reunidas. Apesar do medo, achei que seria uma absoluta frustração, um completo anticlímax, estarmos todos ali reunidos e não haver qualquer manifestação. Pelo que me lembro, sequer havíamos preparado faixas ou cartazes. Por isso, levantei e falei: “Liberdade não se pede; se pratica”.

Se tivesse podido, continuaria falando sobre liberdades democráticas e criticando o regime militar. Mas fui imediatamente seguro por dois brigadianos e, ao ser conduzido para a viatura, fui gritando: “A luta continua. A luta continua...” Claro, eu queria que o pessoal continuasse mobilizado. Se tudo terminasse ali, seria uma derrota completa.

Do meu interrogatório na Polícia, naquele dia, há uma passagem engraçada. Lá pelas tantas, perguntaram-me a respeito do panfleto convocatório, quem era o responsável por ele. Eu respondi que o tinha visto no chão da faculdade, mas que nada sabia além disso. O inquisidor me olhou com expressão de “mas tu és muito cara de pau”, e disse: “tu entregaste um destes para um dos nossos homens na porta do Direito”. Aí, eu fiz cara de “é..., pois é...” Bom, não é de admirar que eu tenha entregado um panfleto para um rato. As estatísticas oficiosas eram de que, dos cem ingressos naquele ano na Faculdade de Direito, 27 eram ratos.

Pelo que me contaram depois, a partir da minha detenção, o ato passou a ter uma reivindicação, que era a minha soltura. Assim, depois do interrogatório, fui conduzido de volta à Praça do Direito, para que todos vissem que a reivindicação tinha sido atendida.

Para me soltarem, haviam imposto como condição que, uma vez solto, eu não permanecesse na Praça. Eu achei que, àquela altura da jogada, era uma negociação razoável. Então, ao chegar à Praça, disse: “Eu fui solto e estou me retirando”. Para mim, era só um recuo tático, mas, para muita gente que lá estava, deve ter soado tremendamente desmobilizador, talvez até covarde. O fato é que estávamos todos apenas começando a aprender. Não tínhamos articulação com as entidades estudantis de Porto Alegre ou do resto do País. Não sabíamos mesmo como fazer as coisas.

Fiquei sabendo, também, que, durante o período em que eu estive detido, coisas interessantes haviam acontecido. Em certo momento, o Lúcio Castagno levantou-se e escreveu um grande “L” na areia. Logo, alguém mais foi lá e escreveu um “I”. E, assim sucessivamente, até formar aquela bela palavra que todos sabem.

Contaram-me que, em negociações com os agentes da repressão lá presentes, eles impuseram que não era permitido fazer discursos, e que, cantar, só eram permitidos os hinos. Daí, ao cantar o Hino da Independência, a moçada só ficava repetindo o refrão: “Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil”. Deve ter sido muito bonito!

Depois desse ato, lembro que tentamos, ainda em 77, acompanhar mais dois Dias Nacionais de Luta. Mas não tínhamos representatividade, experiência... Os outros atos reuniram ainda menos gente. Não deu certo.

Lembro bem da missa em memória do Edson Luís que o Fernando Grassi relatou. Foi rezada pelo Padre Régis, que o Paulinho Brum já lembrou em algumas mensagens. Só lamento “cortar o barato” do Grassi num aspecto: pelo que recordo, a realização da missa na capela da Gonçalves Chaves, e não no São José, não foi um drible genial na repressão. O que aconteceu mesmo é que a missa ia, de fato, ser no São José, mas, no dia, as freiras daquela escola ficaram com medo e negaram, em cima da hora, o empréstimo da sua capela. Por isso, de última hora, o local foi mudado. Pelo menos é a lembrança que tenho.

Outra historinha que revela bem como as coisas às vezes aconteciam meio por acaso é a da minha vinculação à tendência que passei a integrar, a Peleia. Bem no início da minha militância, uma vez, estando em Porto Alegre, fui à UFRGS atrás de algum material impresso do ME. Não sabia nem onde funcionava o DCE (que, aliás, naquele ano, era controlado pelo PCdoB – Fredo Ebling, David, Biloca). Por puro acaso, fui bater com os costados no DAIU (do Instituto de Ciências Humanas), onde estavam o Renatão, a Ingrid... Ainda não era Peleia. Era uma tendência, cujo nome não lembro, que depois rachou em Peleia e Manifesto. Simplesmente me apresentei, e pedi material. Eles me deram um tanto de textos e, a partir dali, comecei a me aproximar deles.

É verdade que, no MDB e no seu Setor Jovem Estadual, eu me afinava com a Tendência Socialista, liderada pelo Raul Pont, José Carlos Oliveira..., que era a mesma corrente. Mas, no ME, a coisa foi desse jeito que contei mesmo.

No 2º semestre de 77, veio a conquista da Medicina, de outros D.A.s e, em 78, a chapa Construção. Sobre tudo isso, outras pessoas já falaram. Uma coisa que ainda não foi mencionada é uma campanha que fizemos – em 79, eu acho -- de solidariedade à Revolução Sandinista, pedindo dinheiro na rua para remeter para esse movimento. Aliás, é triste saber que, hoje, o Daniel Ortega está no Governo apoiado pelos Contras. Para não falar das denúncias de que ele cometeu abusos sexuais.

Por último, houve o ato político que marcou minha saída da Universidade. Deveríamos nos formar no mesmo semestre Paulinho Nogueira, Bitisa e eu. Resolvemos receber nosso grau separadamente de outros colegas que estivessem se formando naquele mesmo semestre, no gabinete do Diretor da Faculdade, que era o Silvino Lopes Neto. Redigimos coletivamente um discurso que não deixava pedra sobre pedra. Fizemos panfletagem na Faculdade chamando para o ato. E mandamos ver.

Esse documento nós temos até hoje. É uma pérola. Um “show” de doutrinarismo, esquerdismo, radicalismo, sectarismo e mais alguns “ismos” que não sei direito. Eu fico até um pouco envergonhado, mas o Paulinho e a Bitisa entenderam que deveria ser disponibilizado para a galera. Portanto, se alguém tiver interesse, está disponível.

Então, gente, já escrevi demais. Mas espero que, no meio de todas essas lembranças, algumas coisas vocês achem curiosas ou divertidas.

Um grande abraço,

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