FÉLIX, 466... OU MEMÓRIAS DE UM PORÃO

Por Armando Cruz

Não havia "tecnologia".
Não havia computador.
Era sexta e nem precisava despertador.
A turma da Dulce vinha e me acordava. O Pena, o Luiz, o André Hipólito, o Cupertino, o Conde, a Jane, a Carmen, o Chicão.
Íamos pro porão da casa do Doca, que a essa hora já estava no Liberdade com o seu Giannini que ainda não tinha sido roubado. Ensaiávamos até as 11; depois, caíamos na gandaia. Destino: Félix da Cunha, 466 (antiga B52), vulgo, O Porão. A luz era negra e nossos dentes ainda bem branquinhos. Quando sorríamos, era só o que se enxergava: os dentes como teclas de piano. O repertório incluía Beatles, Santana, Raul Seixas, Emerson Lake & Palmer, Paulo Diniz, Sérgio Sampaio, Tim Maia, e muito mais. Depois dali o endereço mais próximo era A Arcada, que não tinha porão. Nossos dentes, sempre afiados, iam ficando cada vez mais brancos. Lá pelas quatro já estávamos dentro da boate do Direito. Lembro até hoje do porteiro: era mal-encarado mesmo! E nunca lavava aquele seu terninho cinza (que não foi feito pelo Doca, óbvio). Tinha uma barriga enorme e o terceiro botão do casaco, muito esticado, parecia uma metralhadora apontada. Loucos de fome, corríamos feito idiotas pro cachorrão aquele que hoje é o Sanata. Contávamos as moedas sobradas para comer aquele cachorro com uma ou duas salsichas, dependendo do tamanho das moedas. Uns tinham bronca e preferiam ir pro Cidadão, que ficava na esquina do mercado com a Quinze. Íamos dispersando pela madrugada, mas faltava uma coisa, e não sei se foi o Peninha ou o Ronaldélis que sugeriu o Alphaville, quase na esquina na Bento, dentro do Estádio do Pelotas. Tinha outros que não iam porque no sábado tinha jogo do Xavante, e a garra era uma questão de IDEOLOGIA.
Eu ia a tudo, desde que me quisessem. Só não subia em poste pra colar santinho porque desde pequeno tinha um problema de coluna: ela nunca esteve exatamente no centro. Daí, me fiz uma pergunta imbecilmente adolescente: Por que será que normalmente nosso pau, quando nos vestimos, independentemente da cueca ou da calça, se posiciona à esquerda? Claro que fiquei sem resposta.
Em 78, estava montando a peça "Aprendiz de Feiticeiro", de Maria Clara Machado, que era tida como proibida pela censura. No elenco, Cláudio Penadez, Vítor Ramil e Ben Wilson Berardi.
Descobri, mais tarde, por que os censores tinham aquela implicância toda. No final da peça, havia um general que virava burro, como nos Contos de Fada e dizia, em sua demência final: "Eu sou o General Electric!", "Eu sou o General Motors!" E foi com isso que o departamento pedagógico da ETFPel implicou. E a coisa empacou. E depois complicou: fui convidado a me retirar da casa com meus serviços teatrais. Não adiantou: o estrago estava feito. "Aprendiz" fez parte do primeiro festival de Teatro Amador de Santa Vitória, o Palmarte. E teve apenas 5 apresentações.
Tempos depois, encontrei a turma da Dulce de novo. Já não existia mais O Porão, a Arcada, o Alphaville, o Gago ou o Bife Sujo. Passei a freqüentar a Gruta e o Bar do Babi, pra tomar Rabo-de- galo e Batida de côco, as duas primeiras usinas de Etanol genuinamente nacionais... e pelotenses.

Um comentário:

  1. Em 77, 78, eu frequentava mais o Salú, do Lopes, que originou o Liberdade, este em outro local.
    O Salú ficava na Félix, na calçada do Derby, no meio da quadra.
    Eu, o Café e outros dois amigos começamos eventualmente a "fazer um som" no boteco. Foi aí que conheci o Doca, o Avendano, o Nogueira e tantos outros boêmios amantes da música.
    Nesta época o Doca e o Nogueira apareciam sempre juntos, acompanhados, também, pelo Antônio. O bom humor era a tônica.
    Não lembro qual dos dois apelidou de "a parte pescorial do abdomem" o que chamamos de pau.
    Doca adorava cantar "Da Cor do Pecado", apesar do pulmão já estar deveras prejudicado por anos de tabagismo.
    O grupo que lá se formou, dentre eles o menino que eu era, deu origem à Associação dos Músicos de Pelotas, fundada num churrasco na Cohab do areal.
    A necessidade em criar a Associação veio do fato de que a Ordem dos Músicos do Brasil dava batidas nos bares, com o auxílio da PF de Rio Grande, impedindo a música caso os músicos não tivessem carteira da OM. Testemunhei estes brutamontes mandarem o Avendano (um dos melhores cavacos do país) guardar seu instrumento por não ter a maldita carteira.

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