LINHAS TORTAS

Por Pedro Moacyr Pérez da Silveira

Ser estudante universitário no início dos oitenta significava uma série de coisas diferentes das de hoje. Não tínhamos automóveis para ir para a faculdade, a guerra fria dividia o mundo em duas partes muito nítidas, a formação de casais entre colegas pressupunha um modelo de relação mais estável, e discutíamos política interminavelmente. A vida do estudante daquele tempo contemplava um mundo mais lento e com informações menos plurais, o contato com a tecnologia não expressava uma sedução de consumo como a que se verificou a partir dos noventa. Não havia computadores e vídeo games, telefones celulares e televisão a cabo. Ficávamos impressionados com os fucas de tala larga e com uma geringonça da comunicação chamada Faixa-cidadão, cujos usuários tinham uma linguagem própria e que se assemelha em muito com o que, após, foi implementado nos táxis quando surgiram as empresas de rádio-táxi. Era um tempo em que os estudantes fumavam bem mais seus cigarros lícitos; os ilícitos eram fumados pelos magrões, boa parte deles vinculados a movimentos esquerdistas de toda ordem, como foram a Avalu e a Libelu. Esta última, uma facção de orientação trotskista, nascida ainda nos setenta, estabelecia um modelo comportamental consideravelmente singular para os seus integrantes: as bolsas eram artesanais e de longas alças transversas, postas sobre um ombro para que seu usuário a abrisse do lado oposto àquele ombro, normalmente à altura do quadril; era comum o beijo na boca como forma de cumprimento, inclusive entre pessoas do mesmo sexo; as mulheres não depilavam as pernas e axilas e também havia uma recusa moral a quem se declarasse stalinista ou adepto do centralismo democrático. As discussões políticas, enfim, tomavam longo tempo nas assembléias estudantis, onde havia uma disputa acirradíssima para os DCEs e para a UNE. O objetivo de todo estudante consciente era impedir que a direita tomasse conta, e nas hostes da direita ingressava, por exemplo, aquele que quisesse fazer política estudantil apenas no âmbito das faculdades, estiolando os estudantes no âmbito do que eram seus interesse específicos, sem que houvesse um diálogo, considerado muito necessário, dos estudantes com a sociedade civil e seus setores. Desta forma, havia um estímulo à partidarização dos Centros e dos Diretórios Acadêmicos. Era preciso respirar política, praticá-la todo o tempo, discutindo o Brasil e o Mundo. Hoje, esta partidarização é criticada em nome de uma recomendável (quem recomenda?) neutralidade. Neste sentido, o que chamávamos de direita ganhou a parada: cada vez menos o mundo e o coletivo interessam aos estudantes contemporâneos, e cada vez mais se evidencia a necessidade de apenas tratarem de seus interesses mais imediatos. Eu, vindo daqueles tempos, me entristeço sobremaneira com as características atuais da política estudantil, apegada ao umbigo de seus próceres e voltando a atenção à qualificação formal da educação, onde vale tudo, e onde a conscientização política é vista como um processo que apenas cansa e que deve ser evitado. Há mais o que fazer, como discutir currículos e grades, atentar ao professor faltoso e fiscalizar o andamento da matéria, tudo com vistas a uma boa preparação para a realização do Provão do MEC e, no caso do Curso de Direito, do Exame da OAB e dos concursos para ingresso em alguma das carreiras jurídicas.

Mas é no cenário do início dos oitenta que recordo um fato, sobre o qual o Fernando Grassi me encomendou esse pequeno texto. Minha turma de faculdade havia promovido uma boate (no Sanata, naturalmente, como era conhecida a Boate do Direito). O objetivo era arrecadar uns trocos para qualificar um pouco mais nossa colação de grau. Acho que o ano era 81, no máximo 82. Uns ficavam no bar, vendendo as bebidas, outros numa salinha onde eram deixadas algumas roupas dos freqüentadores, enquanto um grupo se revezava, ainda, entre o guichê de venda dos ingressos e a portaria. Bem depois da meia-noite coubera ao Jacondino ficar na portaria. Eram dois irmãos Jacondino, refiro-me ao mais baixo, o Wilson. Lá estava ele, recebendo ingressos dos que haviam passado pelo guichê e rosnando na direção dos que, sem ingresso, buscavam entrar. Naquele mesmo dia, num evento que durara várias horas, o presidente da UNE, que estava em Pelotas, havia discutido na sede do DCE uma série de questões políticas, inclusive visando a manutenção do PC do B na diretiva nacional dos estudantes. O PC do B era o partido político a que pertencia o presidente da UNE. Pela madrugada, resolveram alguns estudantes que assediavam o coordenador nacional da política estudantil conduzi-lo até o Sanata, para que se divertisse um pouco em nossa boate e também porque o mesmo era acadêmico de Direito. Não supuseram, por ser um tanto natural, que deveria o presidente da UNE pagar ingresso para ganhar o recinto da boate. Mas, ingênuos, não supuseram também do que seria capaz o Jacondino. Ao ser anunciado como presidente da União Nacional dos Estudantes, ao mesmo tempo em que pediam-lhe passagem nas cercanias da porta, puderam ouvir do Jacondino, que talvez nem soubesse o que era a UNE ou, se sabia, não lhe interessava nem um pouco a agremiação:

- E eu sou o Presidente da República e ele não vai entrar.

Pouco depois, o rapaz foi embora com o seu séqüito, sem querer discutir. Era gentil e de fala nordestina, e estranhava o frio que fazia naquela noite, lembro-me bem.. O Jacondino impediu o penetra em nome de um princípio vital para as relações do mercado de consumo, ou seja, sem o pagamento do preço não há como assenhorar-se do objeto. O líder estudantil não se divertiu aquela noite. Se o conseguiu, foi noutro lugar. Tínhamos o Jacondino à porta, e isso não era pouco. O Jacondino por certo não era o Presidente da República, mas o alagoano barrado, hoje, pode sê-lo. É o Presidente da Câmara dos Deputados, e responde pela presidência do Brasil na ausência do titular e do vice. Interesso-me em saber se acaso o Aldo Rebelo, ainda no PC do B, eleito deputado federal por São Paulo, recorda esse acontecimento. O Jacondino possivelmente não. Muitas vezes os fatos vivem mais na memória das testemunhas do que na dos seus protagonistas.

2 comentários:

  1. O título do texto do Pedro é "Linhas Tortas".
    Alô, alô redator, favor fazer a correção.

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  2. Valeu, Fernando! A correção já foi feita...

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