COZINHEIROS, PINTORES, SECRETÁRIAS, ANÔNIMOS(AS)

Por Ricardo Almeida

É que eu também gosto de lembrar daqueles militantes que “passaram” quase anônimos pelo M.E., pois eles quase nunca são lembrados, embora tenham contribuído decisivamente para a realização dos nossos sonhos. Eu sei que a história oficial sempre tentou nos convencer que somente existiam chefes, mas foi lendo Brecht que aprendi a perceber que sempre “havia um cozinheiro” nas nossas façanhas. Pena que algumas reflexões (e até livros que falam da época) insistam em falar apenas nos presidentes, nas lideranças e não sei lá o que mais... Eles não aprenderam ou não se importam com a contextualização de cada época. Ainda bem que aqui nesta lista se vê vários depoimentos que caminham num campo que expõe toda aquela realidade complexa e diversificada, ou seja: mostram que não tínhamos apenas chefes e nem um único ponto de vista.

Por isso mesmo, quero fortalecer ainda mais essa linha de raciocínio e lembrar de um estudante da Engenharia Agrícola que adorava cinema e tinha um projetor de 16 mm. Ele logo se juntou à gente quando percebeu que poderíamos promover sessões muito especiais de cinema. Algumas sessões tiveram que ser clandestinas, pois eram filmes proibidos pela ditadura militar do Brasil. Quem assistiu aquelas sessões de Outubro, de Sergei Eisenstein no Pelotense, de Ana e os Lobos, de Carlos Saura, Esposamante, com Mastroianni e a Laura Antonielli ou de La Luna, de Bernardo Bertolucci, Actas de Marusia, Miguel Littin, sabe muito bem do que eu estou falando. Sabe da importância que tudo isso teve para nós. Mas, quem lembra desse “nosso companheiro”? Ele passou, simplesmente... Adorava cinema e, sinceramente, até hoje não sei se ele era comunista, liberal ou daltônico. Sei apenas que gostava de cinema, e nunca nos preocupamos com as convicções políticas que ele tinha.

Como a maioria dos filmes vinha de São Paulo, a gente tinha que esperar religiosamente o ônibus que chegava à tardinha no escritório da Penha-Itapemirim. E no dia seguinte a gente devolvia “as latas”, pois além do aspecto da segurança, o DCE-UEE pagava uma diária muito cara por aquelas locações. Apenas duas ou três vezes resolvemos levar aquele projetor até a Colônia Z3 e ao Clube do Laranjal, para projetar A Mãe, baseado no romance de Gorki, e outros filmes clássicos, mudos e soviéticos. Para nós, além de uma aventura, se tornou uma experiência inesquecível, e acho que para os moradores de lá também. Hoje, nas minhas fantasias, apenas tenho uma vaga lembrança de alguns olhos brilhando na frente de telas improvisadas.

Uma boa obra de arte vale mais do que mil discursos, mas projetar O Passageiro, de Antonioni naquela época ideologizada foi uma ousadia gratificante para nós. Depois de anos ouvi pessoas lembrando com muito entusiasmo daquela sequencia de sete minutos quase no final do filme, onde a câmara ultrapassa as grades da janela do hotel em busca da realidade... (seria a liberdade?). Também foi assim com Ivan - o Terrível, Alexandre Nevsky e O Homem que virou suco. Tudo aquilo feito com um velho projetor e a tecnologia disponível na época. Somente quando queimou a lâmpada é que alugamos um projetor super azeitado e silencioso, de um senhor relojoeiro que morava na Benjamin Constant. Outro grande cinéfilo que contribuiu muito conosco!

Como seria tudo isso nos dias de hoje? As coisas acontecem de maneira bem diferente, pois as novas tecnologias estão aqui e ao mesmo tempo na casa de quase todos nós. O que falta, na minha humilde opinião (se é que falta), é um pouco mais de ousadia e entendimento de novas linguagens e meios para conseguir se comunicar melhor. Se o tempo do projetor 18 mm já passou, também passou a história daquele menino que projetava filmes pra nós... Mas, se ele era um sonhador (como éramos quase todos nós...) ele deve estar navegando no YouTube e/ou num IPhone, se deliciando com as novas possibilidades de comunicação existentes. Pena que sequer lembro do nome dele... Não importa? Será? Alguem lembra? É... Acho que a vida é assim mesmo: a gente lembra muito pouco dos detalhes. Um abraço

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